Ê notório que a internet inovou diversas relações sociais e comerciais, criando realidades que não são satisfatoriamente reguladas pelo Direito.
Existe uma clara defasagem entre os avanços tecnológicos e a produção de normas aptas a conferir um adequado tratamento jurídico às novas formas de se interagir e de se fazer negócios. No direito tributário essa defasagem é mais acentuada, dado que as regras de incidência tributária estão atreladas a conceitos rígidos, muitas vezes incompatíveis com a dinâmica do ambiente virtual.
Um caso ilustrativo dessa relação conflituosa entre tributação e internet é o recente debate sobre a partilha do ICMS no comércio eletrônico interestadual. Recentes notícias dão conta que muitos Estados da Federação criaram ou pretendem criar barreiras tributárias para mercadorias que consumidores ali residentes adquirem em lojas virtuais que possuem centros de distribuição localizados em outros Estados. Nesse contexto, o ICMS seria exigido no momento em que as mercadorias ingressassem o território do Estado onde reside o consumidor final. Na maioria dos Estados que implementaram medidas dessa natureza, o imposto é exigido à razão de até 10% do valor da operação.
Antes de tratar da exigência propriamente dita, convém salientar que a atividade principal desenvolvida pelas lojas virtuais nada mais é do que uma modalidade de compra e venda mercantil, em que o comprador adquire um determinado bem oferecido pela internet em um site mantido pelo vendedor, que se responsabiliza pela entrega. Embora a venda tenha sido realizada pela internet, a loja virtual se utiliza das dependências físicas de um estabelecimento, geralmente um centro de distribuição, de onde a mercadoria é remetida ao comprador.
Os compradores de mercadorias em lojas virtuais geralmente são pessoas físicas e, portanto, não contribuintes do ICMS. Em razão da natureza do destinatário, a grande maioria das operações interestaduais com mercadorias negociadas pela Internet está sujeita à tributação do ICMS apenas no Estado onde se situa o estabelecimento remetente, ou seja, o centro de distribuição da loja virtual. Isso porque a Constituição Federal, em seu artigo 155, parágrafo 2º, inciso VII, alínea ‘b’, submete à alíquota interna do estado do remetente as operações interestaduais em que o destinatário for consumidor final não for contribuinte do ICMS.
Embora não seja difícil qualificar as operações realizadas pelas lojas virtuais e extrair os elementos necessários para se determinar a incidência do ICMS, é inegável que comercio eletrônico aumentou exponencialmente a quantidade de operações interestaduais de circulação de mercadorias a não contribuintes e, portanto, submetidas à tributação do ICMS exclusiva no Estado de origem.
As conseqüências negativas para os Estados predominantemente destinatários de mercadorias transacionadas pela Internet são bastante claras. À medida que um consumidor prefere a internet ao comercio tradicional de sua cidade, a arrecadação de ICMS gerada por suas compras é deslocada do Estado de sua residência para o Estado onde se situa o Centro de Distribuição da loja virtual.
Trata-se de uma nova realidade gerada pelos avanços tecnológicos, que certamente não foi contemplada pelo Constituinte de 1988, quando este submeteu as operações interestaduais de circulação de mercadorias com destino a não contribuintes ao princípio da tributação na origem.
A reivindicação dos estados predominante destinatários das mercadorias negociadas pela internet, de receber uma parcela do ICMS gerado na operação interestadual, pode ser justificável sob o ponto de vista econômico e de justiça fiscal. Afinal de contas, o ICMS é um tributo concebido para onerar todo ciclo de operações destinado, em última análise, a levar uma determinada mercadoria ou serviço ao seu consumidor final e, no caso das vendas pela internet, o Estado onde se situa esse consumidor não arrecada nenhuma parcela deste imposto.
Por outro lado, o conjunto de normas tributárias em vigor não dá nenhum respaldo à pretensão desses Estados. A exigência de um “diferencial de alíquotas” de ICMS no ingresso de mercadoria destinada a não contribuinte no Estado de Destino, que é a forma como esses Estados têm buscado arrecadar imposto sobre o comércio eletrônico, é frontalmente contrária à diretriz constitucional que prevê a tributação desse imposto pela alíquota interna do Estado de origem. Tanto é assim que diversas liminares já foram concedidas para desobrigar as lojas virtuais do pagamento de ICMS nas barreiras estaduais já impostas.
Nesse contexto, a adoção de medidas unilaterais pelos Estados que se sentem prejudicados pela tributação exclusivamente na origem só acirra conflitos com os Estados predominantemente remetentes de mercadorias negociadas via Internet, que hoje detém o pleno direito de tributar essas operações segundo suas alíquotas internas.
A persistir essa situação, o comércio eletrônico como um todo será prejudicado, uma vez que as operações interestaduais serão tributadas na origem, segundo alíquotas internas de até 18% e também no destino, segundo alíquotas de até 10%. Isso significa que a carga tributária das operações praticadas pelas lojas virtuais pode chegar até 28%, o que inviabilizaria esse negócio, já que a carga tributária do comércio tradicional é substancialmente inferior. Se os Estados não se mobilizarem para solucionar esse impasse, as lojas virtuais poderão desaparecer ou serem obrigadas a litigar constantemente, o que também envolve custos nada desprezíveis com a propositura e a condução de ações judiciais em diversos pontos do território nacional.
Por paradoxal que seja, as atuais regras de tributação podem vir a prejudicar até mesmo os estados que hoje são predominantemente remetentes de mercadorias negociadas pela internet. Não é difícil prever uma corrida entre os Estados para atrair, mediante concessão de todo tipo de benefício fiscal, empresas que praticam operações interestaduais tributadas exclusivamente na origem. Diante desse cenário, muitas empresas poderão migrar dos Estados onde atualmente mantém seus centros de distribuição para Estados que oferecerem o pacote mais atrativo de benefícios, invertendo-se as posições entre Estados hoje predominantemente remetentes e destinatários.
Aí poderá ocorrer uma distorção inversa, em que a tributação exclusivamente na origem, aliada à concessão de benefícios fiscais, fará com que o comércio eletrônico tenha carga tributária muito inferior a do comércio tradicional que, experimentará concorrência desigual. Esse também seria um cenário fértil para litígios tributários típicos da chamada guerra fiscal, com Estados questionando a constitucionalidade dos benefícios concedidos por seus pares para atração de centros de distribuição de lojas virtuais.
Diante das considerações acima, está claro que o atual modelo jurídico de tributação de ICMS em operações interestaduais não se presta a regular satisfatoriamente o comércio eletrônico.
De outro lado, é igualmente correto afirmar que as medidas unilaterais adotadas ou em vias de adoção pelos Estados que se julgam prejudicados pelas atuais normas de repartição de ICMS não representam uma solução válida para esse impasse, até porque uma injustiça não pode ser combatida por meios contrários à constituição.
A solução para o conflito tributário inerente ao comércio eletrônico passa por alterações normativas de caráter nacional, o que poderão se processar, por exemplo, mediante (i) promulgação de Emenda Constitucional alterando a partilha do ICMS nas operações interestaduais; ou (ii) celebração de um Convênio em que todos os Estados e o Distrito Federal concordem em abrir mão mutuamente da tributação de ICMS na origem para partilhar a arrecadação do imposto com os Estados de Destino, em moldes semelhantes àqueles já adotados no Convênio ICMS 51/2000, que versa sobre a venda de veículos com faturamento direto ao consumidor final.
Contudo, nenhuma das duas possíveis soluções aqui aventadas é de simples implementação, cada qual apresentando entraves políticos, jurídicos e operacionais que deverão ser satisfatoriamente equacionados pelas partes envolvidas.
Note-se, a esse respeito, que a adoção, pelo Constituinte de 1988, do princípio de tributação do ICMS exclusivamente na origem para as operações interestaduais de circulação de mercadorias para não contribuintes tem uma razão de ser bastante elementar: nenhuma das partes envolvidas neste tipo de operação está ordinariamente submetida ao fisco do Estado de destino.
Já adoção de um sistema de partilha do ICMS nessas operações implica atribuir a obrigação de recolher imposto, em favor do estado de destino, a um estabelecimento localizado fora de seu território ou a uma pessoa física ali residente. Descartada, por ser praticamente inviável, a hipótese de um Estado obrigar pessoas físicas compradoras de mercadorias pela Internet a recolher ICMS, resta a alternativa de a loja virtual ser responsável pela apuração e recolhimento do ICMS em cada Estado onde promove entregas.
Embora esse tipo de obrigação já exista nas operações sujeitas ao regime de Substituição Tributária, fato é que as lojas virtuais ficariam sujeitas a 27 diferentes jurisdições fiscais, o que evidentemente demanda grandes esforços financeiros e de pessoal para o cumprimento de um sem número de obrigações tributárias principais e acessórias. Nesse cenário, lojas virtuais de porte menor fatalmente sucumbiriam aos custos inerentes a um esforço dessa envergadura, ou restringiriam a área geográfica de sua atuação.
Sob esse prisma, deve-se chamar atenção para o fato de que o mecanismo de partilha de ICMS implementado no Convênio 51/00 é voltado para montadoras e importadores de veículos, segmento geralmente restrito a empresas de grande porte, e, especialmente, contempla a figura da concessionária como local obrigatório para a entrega do veículo faturado diretamente pela montadora, ou importadora, ao consumidor final. Isso significa que esse modelo não poderia ser aplicado às lojas virtuais sem antes passar por profundas adaptações, necessárias a atender as peculiaridades de seus negócios.
Em suma, a criação novas regras com intuito de equacionar as disputas estaduais sobre o ICMS no comércio eletrônico envolve grandes esforços das partes envolvidas e pressupõe a cooperação entre os Estados, com vistas a conferir alguma racionalidade às regras de tributação e, assim, reverter o atual cenário de litígios, arbitrariedades e medidas unilaterais que afrontam a Constituição.
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