O ator Jim Carrey, no filme americano Eu, eu mesmo e Irene, interpreta o personagem Charlie, que trabalha na força policial de Rhode Island há 17 anos e é amado por todos. Só que Charlie tem um problema: sofre da Síndrome de Dupla Personalidade. Se ele deixa de tomar seus remédios, vem à tona sua segunda personalidade, Hank, que é beberrão e agressivo.
Essa situação pode ser equiparada à confusão que operadores do Direito e a sociedade em geral fazem com a figura do empresário individual, também conhecido como firma individual. É o que denomino de Síndrome da Dupla Personalidade Jurídica.
No dia a dia da advocacia societária presenciamos uma miscelânea entre os conceitos de firma, empresário, empresa, sociedade, pessoa jurídica e pessoa natural.
Não são poucos os que não distinguem conceitos díspares, entendendo que firma individual é uma pessoa jurídica cujo representante legal é o próprio empresário. E o pior: muitas vezes algumas pessoas sustentam esse entendimento justificando que firma individual possui CNPJ e enquadramento jurídico da microempresa (ME).
Não é por outro motivo que por diversas vezes já me deparei no escritório com situações em que autores se qualificam nas petições iniciais da seguinte forma: "José Fulano de Tal FI ME, CNPJ tal", neste ato representado por "José Fulano de Tal, CPF tal".
Também não é incomum decisões judiciais negarem os benefícios da Justiça gratuita aos empresários individuais ao entendimento de que, por serem as firmas individuais "pessoas jurídicas", a concessão da assistência judicial dependeria de prova da insuficiência. Esse entendimento equivocado, mas recorrente, segundo o qual a firma individual (empresário individual) é uma pessoa jurídica necessita ser esclarecido.
O Código Civil (clique aqui) é claro ao elencar as pessoas jurídicas de Direito Privado em seu art. 44 para, mais adiante, no Livro II, conceituar o empresário e os requisitos para exercício de sua atividade.
Para que o empresário individual (pessoa natural) possa exercer atividade empresarial (atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços – art. 966 CC) ele precisa se inscrever nos órgãos de registro do comércio (art. 967 CC).
Nesta hipótese, o empreendedor continua sendo pessoa natural que, no exercício da empresa ("empresa" não se confunde com "sociedade", pois segundo o conceito jurídico de empresa, esta nada mais é do que a exteriorização da atividade do empresário), apresenta-se como empresário individual. A inscrição da pessoa natural como empresário individual no órgão de registro do comércio não tem o condão de transformá-lo em pessoa jurídica, como em um passe de mágica.
Lado outro, se o empresário individual (pessoa natural) possuir pelo menos um sócio e assim desejar, ele poderá constituir uma sociedade, por exemplo, de responsabilidade limitada. Então, neste caso, a união de duas ou mais pessoas para a prática de atividade empresarial os tornariam sócios, quando então "nasceria" uma sociedade limitada (pessoa jurídica), dotada de personalidade própria e distinta de seus "criadores".
Em resumo: só existe pessoa jurídica quando houver no ato da constituição da sociedade o mínimo de dois sócios (pessoas jurídicas ou naturais, pois o Direito Brasileiro, ao contrário do Italiano, não permite sociedade unipessoal de responsabilidade limitada – art. 1.033, IV CC).
Como a firma individual é uma "sociedade" de um sócio só, e o Direito Brasileiro não permite essa figura, o empreendedor tem que atuar como empresário individual sujeito a registro na JUCEMG.
Tanto assim o é que, no Direito Brasileiro, infelizmente ainda não existe separação entre o patrimônio da pessoa natural e o do empresário individual, pois ambos, por óbvio, são um só. E exatamente por ser um só é que a responsabilidade do empresário individual é ilimitada e solidária, não subsidiária.
Por fim, um último esclarecimento sobre a sigla ME ao lado do nome de alguns empresários individuais e a detenção, por eles, de cartão CNPJ (que muitos acham que é documento exclusivo das pessoas jurídicas).
O cartão CNPJ é mera exigência fiscal para que a pessoa natural possa praticar atividade empresarial como empresário individual. A obtenção do CNPJ também não tem o condão de, em um passe de mágica, transformar uma pessoa natural em jurídica.
Já a sigla ME significa apenas que o empresário individual está enquadrado dentro de uma faixa de faturamento em cada ano-calendário. E não, como também equivocadamente entendem alguns, que se trata de uma "microempresa" (no sentido de uma pessoa jurídica).
Portanto, ao contrário do filme Eu, eu mesmo e Irene, no qual existem duas pessoas em uma só, o mesmo não acontece em nosso ordenamento jurídico.
Existe apenas a pessoa natural que, no exercício da atividade empresária é empresário individual (munido de CNPJ e, conforme a hipótese, da sigla ME) e, no exercício da atividade não empresária é pessoa natural (munido de CPF).
Mas, em ambos os casos, existe apenas a pessoa natural, e não duas pessoas (uma natural e outra jurídica) em um só corpo. Tais ficções estão afetas ao cinema, não ao Direito.
Por isso o empreendedor deve compreender com clareza as diferenças entre os tipos societários existentes, atentando-se para os riscos da firma individual, enquanto não existir, no Brasil, a separação do patrimônio do empresário e da pessoa natural.
Autor: João Ribeiro de Oliveira
Fonte: Migalhas
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