Apesar de ter entrado em vigor em 2002, a versão atual do Código Civil teve seu projeto feito 27 anos antes. Tamanho intervalo tornou a lei, já no seu nascimento, anacrônica em relação a diversas outras normas na área societária e comercial, como as leis de falências, das sociedades anônimas, de representação comercial e de franchising, para ficar em apenas alguns exemplos. Esse fato levou a Câmara dos Deputados discutir um novo Código Comercial, que centralize diretrizes hoje espalhadas em um dos ordenamentos jurídicos mais complexos do mundo.
Esta é a opinião dos especialistas que participaram de audiência pública sobre o tema na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, no dia 18 de maio. A iniciativa, primeira nesse sentido, deve ser acompanhada pelo Ministério da Justiça, por meio de uma comissão de juristas a ser criada para elaborar um anteprojeto. Isso não impede que o Legislativo já adiante uma proposta, como sugeriu o deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA), um dos membros da CCJ presentes à audiência. Ele se ofereceu para apresentar como anteprojeto o livro O Futuro do Direito Comercial, escrito pelo advogado Fábio Ulhoa Coelho, professor de Direito Comercial da PUC-SP.
Estiveram presentes no encontro os professores Fábio Ulhoa Coelho e Maria Eugênia Finkelstein; o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Manoel de Queiroz Pereira Calças; o procurador de Minas Gerais Paulo da Gama Torres; o advogado Armando Rovai, presidente da Comissão de Direito Empresarial da OAB-SP; e o gerente executivo da Confederação Nacional da Indústria, Cassio Borges.
Para os debatedores, a queda de seis posições do Brasil no ranking internacional de competitividade elaborado por uma instituição suíça de administração — o país foi para o 44º lugar — se deve à complexidade da legislação comercial. A existência de grande número de normas e o alto grau de dificuldade em se concatenar todas elas, por um lado, e a falta de regras em relação a novas situações, como as cooperativas comerciais e produtivas, por outro, mostram a urgência de mudanças.
De acordo com o professor Fábio Ulhoa Coelho, o novo Código Comercial não concentraria todas as regras da área, mas sim seus princípios. "As leis extravagantes continuarão existindo. O que está funcionando será mantido", diz. Ele frisou que seu livro não deve ser visto como anteprojeto da norma, mas uma "minuta". "Não existe código escrito por uma só pessoa, mas sim pelas forças vivas da sociedade. O livro é um pontapé inicial."
Uma das principais preocupações do debatedores foi com pontos de estrangulamento para o funcionamento das empresas. Um deles é o quorum mínimo de 75% do capital social para a aprovação mesmo de mudanças simples nas sociedades limitadas, como endereço, abertura de filiais e aumento de capital. A previsão é do artigo 1.076 do Código Civil.
Para Fábio Ulhoa, é preciso simplificar. "O conceito anterior ao Código de 2002 para sociedades limitadas era mais leve. Para uma alteração contratual, bastava a maioria simples do capital, exceto quando o contrato exigisse unanimidade", explica. Outro ponto destacado pelo especialista é a expulsão de sócios minoritários, hoje facilitada. "Antes, se houvesse cláusula que exigisse unanimidade, não poderia haver expulsões. Já hoje isso pode ser deliberado pela maioria. Sócios com menos de 50% do capital não têm como se proteger."
A burocracia para a formalização de empresas nos órgãos de registro público também é uma pedra no sapato. O custo médio para a abertura de uma empresa no país, segundo os participantes, é de R$ 2.038, enquanto que no resto do mundo é de R$ 682. "Segundo o Banco Mundial, a abertura de uma empresa no Brasil demora 154 dias. Na Colômbia, são apenas três. E em Cingapura, 15 minutos", compara a professora Maria Eugênia Finkelstein. Ela propõe que o novo código discipline a abertura em apenas um órgão, modelo conhecido como one stop window.
A mudança exigiria adaptação dos sistemas usados pelos órgãos nas esferas federal, estadual e municipal, que hoje possuem, cada um, um cadastro independente. Também se propôs que as juntas comerciais, hoje administradas pelos estados e responsáveis pelo registro dos contratos das sociedades, passem a operar em regime de concessão pública à iniciativa privada.
Exigência nascida com o código de 2002, as reuniões anuais a serem feitas pelos sócios para a aprovação de contas, cujas atas precisam ser submetidas ao registro público, é incongruente para micro e pequenas empresas, na opinião de Ulhoa. O problema, para ele, são os custos com burocracias, contadores e advogados. "Essas sociedades são formadas em sua maioria por marido e mulher. Gasta-se com um conflito que nunca vai ocorrer", diz. "Burocracia excessiva empurra as pequenas empresas para a irregularidade."
O atual Código Civil também tromba com leis extravagantes que regem as relações comerciais. É o caso, por exemplo, do prazo para registro das atas de reuniões de sócios nas sociedades limitadas. O Código diz que os documentos devem ser registrados nas juntas comerciais ou cartórios em até 20 dias. Já a Lei 8.934/1994 fala em 30 dias.
Criada também em 2002, a proibição de sociedades entre marido e mulher casados sob o regime de comunhão universal ou separação total de bens é outra "bobagem" a ser tirada do regramento, na opinião de Ulhoa. Segundo ele, a previsão nasceu da concepção de que não existe sociedade real entre "o homem provedor e a mulher dona-de-casa", ou seja, que essas sociedades teriam, na verdade, apenas um sócio, o homem. "É uma visão anacrônica da mulher na sociedade", diz.
Sinal de fumaça
Nas relações comerciais, a defasagem é ainda maior. A regra atual prevê que duplicatas só são válidas quando emitidas em papel, e com o aceite do devedor. "Isso não acontece há 20 anos", afirma Ulhoa. Mas segundo ele, ainda há juízes que consideram a cobrança indevida se o rito não for seguido à risca. "Na prática, boleto bancário não vale como título de crédito, não posso sequer protestar em cartório", esclarece Maria Eugênia. Para ela, títulos eletrônicos são um problema levando-se em conta a lei vigente.
Nas relações comerciais, a defasagem é ainda maior. A regra atual prevê que duplicatas só são válidas quando emitidas em papel, e com o aceite do devedor. "Isso não acontece há 20 anos", afirma Ulhoa. Mas segundo ele, ainda há juízes que consideram a cobrança indevida se o rito não for seguido à risca. "Na prática, boleto bancário não vale como título de crédito, não posso sequer protestar em cartório", esclarece Maria Eugênia. Para ela, títulos eletrônicos são um problema levando-se em conta a lei vigente.
O mesmo acontece com qualquer tipo de documento eletrônico, que hoje não serve como prova. "Salvo atos com certificação, nenhum documento eletrônico, inclusive e-mails, serve como prova para a Justiça, a não ser como evidência inicial", explica a professora. Para ela, o novo Código deve contar com um capítulo especial sobre comércio eletrônico.
Medida que provoca polêmica e inúmeras contestações judiciais, a desconsideração da personalidade jurídica das empresas é outro ponto que o novo Código Comercial pretende regrar. Com a falta de clareza do Código Civil, é comum dívidas das empresas serem cobradas integralmente dos sócios, inclusive com constrição de patromônio pessoal. "A ideia é regulamentar como únicas hipóteses de desconsideração a fraude e a má versação", diz Maria Eugênia. "Devem ser medidas excepcionais, e não a regra."
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário